quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Folclore : Conto de susto


Gaspar, eu caio!

Noite escura no mato. Estrada de terra sem vivalma. O vento gemendo pelos galhos e as nuvens passando nervosas, querendo chover.
            Um homem vem vindo lá longe. Devagarinho. Sem lua nem estrela para iluminar a viagem.
            Vem de sacola pendurada no ombro e, na mão, um pau de matar cobra.
            Trovoada. Os pingos da chuva principiam a cair. O viajante aperta o passo. Na curva, dá com uma casa abandonada. Cai um raio de despedaçar árvore. A chuva aperta. Na porta da tapera tem uma cruz desenhada. O homem não quer saber de nada. Mete o pé na porta e entra.
            Dentro, um pouco de tudo. Pedaços de mobília, tigelas, troços e trecos jogados no escuro.
            O viajante faz fogo.
            Agachado, tira um pedaço de carne da sacola e bota para assar. Está morto de fome. Deita no chão e solta o corpo, esperando a comida ficar pronta.
            A chuva vai minguando. O mato fica quieto. De repente, o telhado range. De lá de cima, um gemido rabisca o ar:
-         Gaspar!
O homem estremece. Aperta os dentes. A luz do fogo é fraca. Não dá para ver nada.
A voz chama e chama.
-         Gaspar!
Já passa da meia-noite. Quem será? A voz insiste:
-         Gaspar!
O viajante pensa em fugir. Mas, e a carne? E o frio? E a chuva ameaçando cair?
Encolhido num canto, o homem arrisca:
-         Quem está aí?
A voz, no telhado, continua grossa:
-         Gaspar!
-         Quem está aí?
-         Gaspar!
-         Quem está aí? – pergunta o homem.
A voz então diz:
-         Gaspar... Eu caio!
-         Pois caia! – responde o viajante.
Estrondo. Espanto. Uma coisa despenca lá de cima – catapram – e cai no chão.
Os olhos do homem crescem de pavor.
É um pé. A ossada de um pé. E vem com os dedos mexendo!
A voz bóia no ar:
-         Gaspar!
O homem treme.
-         Eu caio!
-         Pois caia! – grita o homem de novo.
Catapram. Vem outro pé. Cai e vai se arrastando para junto do primeiro.
-         Gaspar!
O viajante respira curto. A cada resposta sua, desabam do forro pernas, coxas,
tronco, braços e mãos de um esqueleto que vai se formando no chão.
O esqueleto começa a dançar.
A luz do fogo desenha sombras estranhas no casebre.
-         Gaspar! Gaspar! Gaspar!
A voz grossa voa cada vez mais alto.
-         Eu caio!
-         Pois caia! – berra o viajante, sentindo sua hora chegar.
E então – ploct – uma cabeça cai lá do alto.
Meio de medo, meio de raiva, o homem chuta a caveira longe.
O corpo descarnado fica zangado. Pára a dança, agacha e, cuidadoso, enfia o crânio
no pescoço. Depois, lambuza a carne que assa no fogo com seu cuspe escuro.
            O sangue do viajante ferve. Estava morto de fome. A carne era tudo o que havia para comer. O homem cata o pau de matar cobra.
-         Pra mim chega! – De olhos fechados, mergulha sobre o esqueleto dando soco e
 pancada. O morto gargalha. Os dois rolam atracados pelo chão da tapera.
            A luta vara a noite. O homem bate, chora e sangra. O esqueleto range os dentes.
            Os dois quebram tudo, apagam o fogo com o corpo e vão parar do lado de fora, rugindo na lama.
            O tempo passa. Um golpe seco estala no mato. Silêncio.
            O morto suspira e cai.
            O viajante continua de pé, vitorioso. Passa o braço machucado sobre o rosto.
            Do chão, a caveira pede para o homem cavar um buraco no pé de uma árvore.
            O homem responde:
-         Nem nunca!
Em seguida, vai até a árvore e trepa num galho bem alto.
Abatido, o esqueleto pega e cavuca ele mesmo. Tira do buraco fundo um tacho
 cheio de ouro e prata. Depois, olhando para o homem pendurado na árvore, solta um gemido e some no vento.
            O viajante fica onde está. Manhã nascendo no mato. Seu peito mexe com força, indo e vindo. Olha as mãos sujas de sangue. Estrada de terra sem vivalma. A roupa rasgada. O suor. O sol avermelhado sopra uma brisa quente entre as folhagens. O homem sente o corpo doído e leve. Olha a tapera. Tem vontade de rir, cantar, conversar com alguém. Salta aliviado do galho, junta as coisas e vai embora.

Fonte:  livro  Meu livro de folclore, de Ricardo Azevedo. Editora Ática.


Nenhum comentário:

Postar um comentário