Gaspar, eu caio!
Noite escura no mato. Estrada de
terra sem vivalma. O vento gemendo pelos galhos e as nuvens passando nervosas,
querendo chover.
Um homem
vem vindo lá longe. Devagarinho. Sem lua nem estrela para iluminar a viagem.
Vem de
sacola pendurada no ombro e, na mão, um pau de matar cobra.
Trovoada.
Os pingos da chuva principiam a cair. O viajante aperta o passo. Na curva, dá
com uma casa abandonada. Cai um raio de despedaçar árvore. A chuva aperta. Na
porta da tapera tem uma cruz desenhada. O homem não quer saber de nada. Mete o
pé na porta e entra.
Dentro, um
pouco de tudo. Pedaços de mobília, tigelas, troços e trecos jogados no escuro.
O viajante
faz fogo.
Agachado,
tira um pedaço de carne da sacola e bota para assar. Está morto de fome. Deita
no chão e solta o corpo, esperando a comida ficar pronta.
A chuva vai
minguando. O mato fica quieto. De repente, o telhado range. De lá de cima, um
gemido rabisca o ar:
-
Gaspar!
O homem estremece. Aperta os
dentes. A luz do fogo é fraca. Não dá para ver nada.
A voz chama e chama.
-
Gaspar!
Já passa da meia-noite. Quem
será? A voz insiste:
-
Gaspar!
O viajante pensa em fugir. Mas,
e a carne? E o frio? E a chuva ameaçando cair?
Encolhido num canto, o homem arrisca:
-
Quem está aí?
A voz, no telhado, continua
grossa:
-
Gaspar!
-
Quem está aí?
-
Gaspar!
-
Quem está aí? – pergunta o homem.
A voz então diz:
-
Gaspar... Eu caio!
-
Pois caia! – responde o viajante.
Estrondo. Espanto. Uma coisa
despenca lá de cima – catapram – e cai no chão.
Os olhos do homem crescem de
pavor.
É um pé. A ossada de um pé. E
vem com os dedos mexendo!
A voz bóia no ar:
-
Gaspar!
O homem treme.
-
Eu caio!
-
Pois caia! – grita o homem de novo.
Catapram. Vem outro pé. Cai e
vai se arrastando para junto do primeiro.
-
Gaspar!
O viajante respira curto. A cada
resposta sua, desabam do forro pernas, coxas,
tronco, braços e mãos de um esqueleto que vai se formando no
chão.
O esqueleto começa a dançar.
A luz do fogo desenha sombras
estranhas no casebre.
-
Gaspar! Gaspar! Gaspar!
A voz grossa voa cada vez mais
alto.
-
Eu caio!
-
Pois caia! – berra o viajante, sentindo sua hora chegar.
E então – ploct – uma cabeça cai
lá do alto.
Meio de medo, meio de raiva, o
homem chuta a caveira longe.
O corpo descarnado fica zangado.
Pára a dança, agacha e, cuidadoso, enfia o crânio
no pescoço. Depois, lambuza a carne que assa no fogo com seu
cuspe escuro.
O sangue do
viajante ferve. Estava morto de fome. A carne era tudo o que havia para comer.
O homem cata o pau de matar cobra.
-
Pra mim chega! – De olhos fechados, mergulha sobre o esqueleto
dando soco e
pancada. O morto
gargalha. Os dois rolam atracados pelo chão da tapera.
A luta vara
a noite. O homem bate, chora e sangra. O esqueleto range os dentes.
Os dois
quebram tudo, apagam o fogo com o corpo e vão parar do lado de fora, rugindo na
lama.
O tempo
passa. Um golpe seco estala no mato. Silêncio.
O morto
suspira e cai.
O viajante
continua de pé, vitorioso. Passa o braço machucado sobre o rosto.
Do chão, a
caveira pede para o homem cavar um buraco no pé de uma árvore.
O homem
responde:
-
Nem nunca!
Em seguida, vai até a árvore e
trepa num galho bem alto.
Abatido, o esqueleto pega e
cavuca ele mesmo. Tira do buraco fundo um tacho
cheio de ouro e
prata. Depois, olhando para o homem pendurado na árvore, solta um gemido e some
no vento.
O viajante
fica onde está. Manhã nascendo no mato. Seu peito mexe com força, indo e vindo.
Olha as mãos sujas de sangue. Estrada de terra sem vivalma. A roupa rasgada. O
suor. O sol avermelhado sopra uma brisa quente entre as folhagens. O homem
sente o corpo doído e leve. Olha a tapera. Tem vontade de rir, cantar,
conversar com alguém. Salta aliviado do galho, junta as coisas e vai embora.
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